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sexta-feira, 28 de maio de 2010

O mito da falsa paternidade

Devo a Etienne Joly, do Instituto de Farmacologia e Biologia Estrutural de Toulouse (França), a indicação de um artigo fascinante: "Desenfreada Paternidade Mal-Atribuída: A Criação de um Mito Urbano". Nele, o australiano Michael Gilding, da Universidade de Tecnologia Swinburne, demole a noção largamente difundida de que 20% ou até 30% das crianças nascidas não foram geradas pelos homens que acreditam serem seus pais biológicos.

Para o australiano, a cifra mais provável de falsas paternidades deve ficar entre 1% e 3%. Ele defende que não existe base firme nem para os cerca de 10% usualmente empregados por geneticistas, como confirmou à coluna o brasileiro Sergio Danilo Pena, da UFMG e do Laboratório GENE, que faz testes de paternidade desde 1982.

Joly deu a dica num desses lugares fantásticos engendrados pela internet, Faculty of 1000. Que não se perca pelo nome, pois na realidade são cerca de 2.300 cientistas do mundo todo que selecionam e avaliam regularmente aqueles artigos --entre as centenas de milhares da literatura científica-- que merecem atenção, não importa onde tenham sido publicados.

O artigo de Gilding tem a serenidade e a sabedoria de coisas antigas e boas. Saiu há cinco anos, uma eternidade para os padrões frenéticos da pesquisa contemporânea, num periódico australiano obscuro, "People and Place". Não fosse pelo francês Joly, jamais apareceria no radar de jornalistas de ciência, nem mesmo dos que vivem implicando com a biotecnologia e a sociobiologia - dois alvos do australiano, depois de militantes de direitos paternos.

Por falar em bom e antigo, uma sábia senhora usava dizer: "Os filhos de minha filha meus netos são; os de meu filho são ou não". Há também quem diga que as piores coisas do mundo são vento pelas costas e sogra pela frente.

O brasileiro Sergio Pena apoia sua estimativa de 10% de paternidades falsas num trabalho de 1999 de Ricardo Cerda-Flores e Ranajit Chakraborty --este "um dos maiores especialistas em genética estatística no mundo", em sua avaliação. O estudo, intitulado "Estimativa de Não-Paternidade na População Mexicana de Nuevo León: Um Estudo de Validação com Marcadores Sanguíneos", saiu no "American Journal of Physical Anthropology".

Os próprios autores admitem que os sete testes utilizados tinham capacidade preditiva baixa e excluiriam no máximo 70% dos casos possíveis. Ou seja, vários pais falsos poderiam escapar entre os espaços da malha frouxa.

O ideal seria usar testes de DNA, não exames de sangue. Mas Cerda-Flores e Chakraborty reafirmam sua confiança no tratamento estatístico que deram aos dados experimentais e à parcela de 11,8% de pais falsos obtida, com margem de erro de dois pontos percentuais (máximo de 13,8% e mínimo de 9,8%).

Ora, o australiano aponta que não existem estudos publicados com base em DNA exibindo percentuais acima de 3%. A maioria oscila em torno de 1%. Apesar disso, queixa-se Gilding, geneticistas e médicos continuam a dar entrevistas e palestras ou a escrever artigos reafirmando, com toda a ênfase, a cifra de bastardos entre 10% e 30%.

Os únicos estudos de base genética que chegam à faixa de 20%-30%, contudo, são os que colhem os dados de clínicas e institutos especializados em testes de paternidade. Aqui o problema está no óbvio viés da amostra: só procura esses serviços quem tem razões para dúvidas. Surpreendente, neste caso, é que a cifra de chifres com resultados não seja maior.

Seriam três os responsáveis pela perpetuação interessada da lenda urbana, na opinião de Gilding: os militantes de direitos paternos, a indústria genética de testes de paternidade e os sociobiólogos (hoje repaginados como "psicólogos evolucionistas" e seguidos até por colunistas fervorosos como Luiz Felipe Pondé, da Ilustrada.

As organizações que defendem pais revoltados com a obrigação legal de pagar pensões aos filhos e ex-mulheres só têm a ganhar com a lenda. Disseminar a crença de que até um terço deles pode estar pagando para alimentar os filhos de outros homens e suas mães adúlteras espicaça o ressentimento inerente à situação em que se encontram. Deve ajudar muito a atrair simpatizantes e doadores.

A perpetuação do mito obviamente também interessa aos estabelecimentos que fazem testes de DNA. Quanto mais homens houver desconfiados sobre a procedência dos genes de seus filhos, maior será a clientela potencial. Sem isso, ela ficaria reduzida ao contingente magro de mães solteiras em busca de reconhecimento legal do direito à pensão.

Mais insidioso é o interesse dos sociobiólogos em pisar no acelerador da falsa paternidade. Eles podem ter mudado de nome e de estilo, trocando os silogismos neolíticos da década de 1970 pelo verniz acadêmico da "psicologia evolucionista", mas não trocaram de programa: "Explicam o comportamento animal e humano em termos de competição genética", resume Gilding.

Esse povo confere credibilidade intelectual à tese não demonstrada da falsa paternidade galopante. Ela se encaixa como uma luva na noção de que as fêmeas têm dois interesses primordiais em relação com o sexo: um, conseguir parceiros com genes bons (homens bonitos e fortes); dois, garantir as melhores condições de sobrevivência para os poucos e preciosos portadores de seus próprios genes (maridos ricos e poderosos).

Como nem sempre a segunda condição está associada com a primeira, haveria em muitos casamentos (de gente) e acasalamentos (de aves, como o cuco proverbial, e outros tantos bichos) um incentivo embutido para a infidelidade feminina. Um quarto das mulheres, pelo menos, sucumbiria à tentação genética. Não é, contudo, o que dizem as pesquisas de opinião sobre comportamento sexual, ressalva o desmancha-prazeres australiano.

Os levantamentos publicados indicam taxas entre 2% e 6% de esposas que traem, conforme o país e a época. Pode-se alegar que as mulheres mentem para os pesquisadores, mas também parece provável que muitas das que pulam a cerca o façam com proteção contraceptiva. Além disso, poucas darão o azar de engravidar justo na escapada, e menos ainda serão tontas de não abortar (pouco importa o que digam as leis e as novelas de TV brasileiras).

Em resumo, a lenda urbana da falsa paternidade desenfreada não encontra apoio em dados publicados e verificáveis, como devem fazer a boa ciência e o jornalismo confiável. Mas quem está preocupado com os fatos da realidade empírica, diante de uma ideia tão sedutora? Bem, esta coluna continua preocupada com isso, mais ainda no momento em que se lança no mundo virtual e fascinante da internet.


MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência em dia). Escreve às quartas-feiras neste espaço.

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