Como eles são do ramo e têm material para refletir sobre as histórias de milhares de famílias (tão iguais quanto diferentes da sua), não dá para descartar essa opinião --como somos tentados a fazer se um dos filhos reclama que o outro é o queridinho.
"A maioria dos pais, se não todos, tem um filho preferido", diz à Folha a psicóloga americana Ellen Libby, do alto de sua experiência de 35 anos atendendo em consultório e no centro de saúde mental da Universidade de Maryland. "Mas são raros os que admitem isso", acrescenta ela, que é autora do livro "The Favorite Child" (sem edição em português).
Antes que algum pai ou mãe se sinta culpado, é bom saber que para ela, como para outros especialistas ouvidos, não há nada de errado com a preferência em si.
"A pessoa não gosta nem de si mesmo todo o dia de forma igual, é impossível gostar igual de dois filhos diferentes", diz o psiquiatra e psicanalista Jorge Forbes.
Faz sentido, mas a lógica não é suficiente para fazer com que pais ou mães se disponham a escancarar esse assunto.
Para a terapeuta de família Tai Castilho, a dificuldade é criada por que acreditamos (ou queremos acreditar) nos mitos da família eternamente feliz e do amor exclusivamente doador.
AMOR EM PARTES
Forbes complica um pouco mais as coisas, dividindo o amor dos pais pelos filhos em duas partes, uma indecifrável e outra compreensível.
"O indecifrável é um amor sem palavras, é aquele que faz com que a pessoa dê sua vida pelo outro. Hoje, é quase risível dizer que você morreria pela revolução, mas não o é morrer para um filho, coisa muito mais delicada e próxima a você. O pai ou a mãe morrem por qualquer filho, é o amor que não distingue."
Desse ponto de vista, não conseguimos conceber uma das crias como a preferida. Mas há outra parte na divisão, a do amor compreensível. Tem a ver com opções, gostos, comportamento.
"Todas essas características vão fazer com que o pai ou a mãe tenham maior afinidade com um ou outro filho. Afinidade quer dizer compartilhar dos mesmos fins. Se gostamos dos mesmos programas, vamos passar mais tempo juntos. Isso depende do gosto e não adianta reclamar, porque é assim mesmo que é a vida."
Nessa parte, gostar igualmente de todos significaria que todos deveriam ser iguais. Algo que não cabe mais no mundo moderno, segundo Forbes.
"Hoje, valorizamos as diferenças. A primeira negociação entre pais e filhos é legitimar as diferenças."
Isso inclui reconhecer a preferência por passar mais tempo conversando com um filho que gosta dos mesmos temas que você ou ser menos exigente com o que se compromete mais com as coisas.
"Favoritismo é escolha, mas, na maioria das vezes, é irracional: reflete nossas necessidades em determinada época, depende de como o filho responde a elas e da química que se forma entre a criança e o adulto", diz Libby.
Escolher sem conseguir explicar racionalmente os motivos incomoda. "Essa história de gostar igual tira a culpa de reconhecer que você tem maior afinidade por um filho", diz Castilho.
DRAMA PARA TODOS
E haja culpa. O escritor Milton Hatoum, autor de "Dois Irmãos" (Cia. das Letras, 272 págs., R$ 42,50) em que a preferência explícita da mãe por um dos filhos gêmeos desencadeia o drama familiar, conta que já foi abordado por leitoras que não conseguiram terminar de ler o livro.
"A escolha [do preferido] é um sofrimento para a mãe, para o escolhido e para o preterido. É um drama para todos e um dos grandes temas do romance moderno."
Nem sempre termina em tragédia. Para Libby, ser o queridinho ou queridinha de um dos pais pode beneficiar a criança, aumentando sua autoestima, confiança e garra para atingir seus objetivos.
A pergunta que não quer calar: se for assim, os que orbitam em torno do favorito seriam desfavorecidos no desenvolvimento da autoconfiança e outros características desejáveis?
Segundo Libby, isso não acontece se, primeiro, os pais forem honestos consigo mesmos e reconhecerem as preferências; segundo, se estiverem abertos para ouvir críticas quando estão privilegiando demais um dos rebentos e, terceiro, escolherem cada vez um filho diferente para ser o queridinho.
"Cada filho nasce em um momento da história do casal e da família. Dependendo do momento, é mais fácil [para os pais] se identificar com um bebê ou com uma criança mais crescida", diz Castilho.
Uma boa estratégia, segundo ela, é falar para cada um dos filhos que ele é o preferido. "Todo mundo quer esse papel."
Até porque a posição traz vantagens imediatas. O estudante Bruno Figueiredo dos Santos, 21, se reconhece como o queridinho da mãe. "Sou mimado [por ela] e gosto. O lado ruim são as gozações de meus irmãos."
O estudante Bruno Cunha, 21, em sua casa, em São Paulo |
Mas há, na família, outros prediletos. Se Bruno é o da mãe, Rafael é apontado como preferido do pai. Já a mais nova é a favorita de todos, dizem eles. "Até a cachorra mima a Luisa", diz o pai, o economista Januário Figueiredo dos Santos, 51.
Dar atenção ao que os outros filhos estão dizendo, mesmo em brincadeiras, é uma forma de ajustar os excessos que podem anular os benefícios de ser o preferido.
Excessivo é, por exemplo, ter sempre o mesmo filho e só um dos pais como atores fixos e quase eternos do relacionamento privilegiado.
"Quando a posição é fixa, o preferido, seus irmãos e os pais perdem a possibilidade de experimentar outros papéis e crescer", diz a psicanalista Leda Bolchi Spessoto.
Muitas vezes, é mais fácil para aquele que não é o predileto tornar-se independente. Isso é uma das poucas vantagens que a estudante Fernanda Macedo, 20, reconhece em sua situação. Ela afirma que sua mãe prefere a outra filha, mais velha. Mariângela, a mãe, insiste que não é uma questão de privilégios, mas que afinidades existem.
PREJUÍZOS
A estudante Fernanda Macedo, 20, na sala de casa, em SP |
"O prejudicial é quando o filho escolhido tem o papel de preencher um vazio do adulto e substituir o companheiro do pai ou da mãe. É o antigo mito de Édipo, que mata o pai e se casa com a mãe, ou sua contrapartida feminina, Electra."
Outro prejuízo é a transformação do queridinho em uma pessoa manipuladora e que se acha no direito de receber tudo, sem dar nada em troca.
"A criança preferida é a que dá prazer ao adulto que mais a interessa. Aprende a agradar para ter mais privilégios e menos deveres", afirma a psicóloga Libby.
Se a escolha do filho favorito é o reflexo de um narcisismo exagerado dos pais, sobra problema para todo mundo, diz Forbes.
"É quando o adulto só consegue manifestar carinho para aquele filho que é seu espelho. O filho que não recebe atenção causa 'problemas' e é visto pelos pais como retrato do próprio insucesso."
IARA BIDERMAN
DE SÃO PAULO PARA A FOLHA
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